Últimos momentos – final

Terminei. Finalmente.

As partes anteriores da história estão aí ao lado na tag últimos momentos. Preguiçosos, cliquem aqui.

– – –

“Mas não é a verdade que eu imaginava” os três disseram ao mesmo tempo.

A mulher sorriu novamente.

_ Nunca é. Incrível como vocês continuam a cometer os mesmo erros em situações diferentes. Chego a duvidar do esquema de reencarnações, mas eu sou apenas a mensageira: não escrevo as mensagens.

Alef olhou para Neith e Dionísio. Percebeu as pequenas semelhanças que os três dividiam: os cigarros, a falta de paciência, o rum, as botas, o humor negro; as regras, o medo de falhar, a necessidade de parecer perfeito, ser o melhor.

“Eles… sou eu”

_ Sim.

“Por isso você não os vê”

“Por isso eu não paro de fumar”

“Por isso eu preciso ser perfeito”

“Eles querem me enlouquecer”

“Eles querem um corpo, bebida, piadas infames e maquiagem”

“Eles querem tanto um menino…”

“Mas eu me enlouqueci antes”

“Mas eu não sou só isso”

“Mas eu não sou perfeito”

“E então, eu caí”

_ Sim, você caiu. E não adianta se revirar aqui embaixo. Não adianta tentar buscar por respostas que nunca virão, pois elas não existem. Agora, o que lhe resta fazer é reunir esses pedaços de alma que vagam nos últimos momentos da sua vida e descansar finalmente.

Últimos momentos – parte 6

“O que você está fazendo?”, perguntou o rapaz.

_ Não é óbvio? – ela sorriu. – Estou no meio de uma competição e, como sempre, perdi.

“Desculpe.”

_ Não precisa se desculpar: eu não jogava para vencer. Mesmo assim, há sempre algo que se ganha.

A mulher sentou-se próximo ao coelho, e este subiu em seu colo. Ela começou a acariciar-lhe; a cada toque, tufos brancos de pelo caíam pelo chão.

Em poucos segundos, tudo o que restava era o cadáver de um coelho.

_ Você precisa descer, Alef. Precisa vir comigo até a entrada.

“Como ela sabe seu nome?”, Dionísio sussurrou.

“E ela não parece poder ouvir ou ver vocês…”

“Eu vou com ela, que se dane”, Neith se levantou. “Isso aqui está muito monótono, mesmo.”

“Mas… você não acha perigoso?”, continuou Dionísio.

“E o que vou fazer? Sentar aqui e esperar a morte chegar?”

A mulher sorriu com escárnio para o rapaz, mostrando seus dentes podres.

_ Você não precisa esperar, garoto.

“Não sei…”, ele se virou para Neith. “Acho que deveríamos pensar mais um pouco sobre o que fazer.”

_ Com quem você acha que está falando? – a mulher pegou seu cajado que estava caído no chão.

“Como assim ‘com quem’?”, Alef olhou para Neith e Dionísio. “Você não pode vê-los?”

Debaixo do capuz, dois grandes olhos negros brilharam à luz tênue da lua. Eles pareciam sugar seu espírito enquanto o observavam.

_ Tudo o que vejo é uma alma confusa e solitária. Uma alma que não sabe como chegou aqui, e nem mesmo se realmente queria vir. Vejo uma alma como todas as outras.

“Essa mulher é louca”, Neith acendeu um cigarro.

“E se ela só estiver fingindo que não pode nos ouvir?”, disse Dionísio.

Alef estava confuso. A mulher debaixo do capuz continuou a falar.

_ Você tentou de várias formas se convencer que não precisava vir para cá. Tentou fazer de sua vida algo… útil, como gostam de dizer; depois, tentou a partir do vazio tirar algum significado para estar respirando. “Não pode ser só isso”, você disse uma vez, muito bêbado em frente a um espelho.

“Não pode ser só isso…”, Alef repetiu.

_ Nas primeiras vezes em que nos encontramos, você estava sempre ocupado demais para enxergar a verdade. E a verdade, rapaz, é que não há nada além disso. Nada além dela mesma: a pura e inexorável verdade.

Últimos momentos – parte 5

Olha sóam, cansei de colocar os links pras partes anteriores aqui. Se quiser ler o resto, clique em textos mal acabados aí no menu ao lado e se joga.

– – – – –

Os três desceram o último declive com dificuldade. Não havia muito no que se segurar, a não ser um ao outro. Neith seguia na frente.

“Eu já estaria aqui em baixo muito antes se vocês não fossem tão lerdos”, disse, ofegante.

“Você é louca!”, o rapaz reclamou. “Eu quase caí por duas vezes. Se Dionísio não tivesse me segurado, eu…”

Ele se virou para o menino com um olhar de agradecimento, mas ele não estava por perto.

“Dionísio?”

“O que foi? O pirralho sumiu?”

“Mas pra onde será que ele foi?”

“Deve estar regando algum matinho por aí”, ela acendeu um cigarro.

“Ei, achei que aquele tivesse sido o último.”

“Eu sempre tenho um último cigarro depois do último”, ela sorriu. “Você quer?”

“Dionísio!”, ele a ignorou.

Caminharam para longe da ribanceira e encontraram uma pequena estrada de terra batida, delimitada por rochas de vários tamanhos, um mato muito escasso. Na primeira curva, viram a silhueta de Dionísio.

“Como você veio parar aqui?”

“Cala a boca!” sussurrou Neith, beliscando seu braço.

Havia um coelho branco, mais branco na densa e turva neblina acinzentada, com olhos que pareciam bolas de gude amarelas. Olhando fixamente para ele, havia uma mulher vestida de negro.

“Você vai falar com ela?”, perguntou Neith.

“Para quê?”. respondeu Dionísio.

“Eu acho que ela pode nos ouvir”, o rapaz disse.

_ Sim, eu posso te ouvir.

Últimos Momentos – parte 4

Aqui estão as partes um, dois e três.

– – – – – –

“Então você ligou o forno e esperou pacientemente até se intoxicar com o gás?”

Dionísio não respondeu. A garota continuava olhando para ele com um sorriso estranho nos lábios.

“Isso é doentio.”

“O que mais eu poderia fazer?”

“Você poderia ter mandado seus pais à merda. Aposto como você nem gostava de tocar piano.”

“Toco piano desde os cinco anos.”

“É, e agora não vai tocar mais nada porque, num segundo infeliz da sua miserável vida, alguém fez com que você se sentisse um lixo.”

“Eu não dei o melhor de mim. Eu deveria ter praticado mais.”

“Você continuaria sendo você, tocando aquele maldito piano ou não. Você não é um piano; sua vida não dependia disso.”

O sol exibia seus últimos raios e escondia-se na densa neblina do que parecia ser o outro lado do oceano. O rapaz olhava fixamente para a bola de fogo, ouvindo sem querer ouvir.

“Eles pagaram caro pelas aulas. Finais de semana viajando, aprendendo com os melhores. Eu deveria ser o melhor.”

“Mas isso era por você mesmo? Em algum momento eles perguntaram se você queria isso?”

“Como eu poderia não querer ser o melhor?”

“É sempre assim”. Ela se levantou e caminhou até ficar de frente para o menino. “Os outros nos dizem o que queremos, o que não queremos… Se você não se impõe para o mundo, acaba se afogando em suas regras. Eu digo que tudo isso não passa de merda.”

“E eu digo”, o rapaz se levantou, “que querer ser o melhor não é errado. Mas você não pode querer cumprir com todas as regras.”

Os dois olharam para ele. O céu escurecia rapidamente do outro lado do oceano.

“Vamos; precisamos descer.”

A garota se abaixou diante de Dionísio e lhe sorriu.

“Eu sou Neith.”

Últimos momentos – parte 3

Pra quem não leu: aqui estão as partes um e dois.

– – – – –

Finalmente, os dois conseguiram chegar perto do que parecia ser o topo de um penhasco. Um borrão avermelhado pairava do outro lado do horizonte, mas não havia mar ou terra abaixo dele: apenas mais do denso nevoeiro.

“Está tudo errado.”

O rapaz não conseguia perceber muito bem de onde vinha aquela voz; parecia estar acima dos dois, mas nada era muito certo sob aquela luz.

“Não era para ser assim…”

“Ah, mais um idiota…” disse a garota.

“Você consegue vê-lo?” ele perguntou.

“Preferia ser cega” ela disse, “mas lá está ele.”

Em cima de uma árvore retorcida havia um menino vestido de terno e gravata. Ele olhava incessantemente para baixo.

“Eu não deveria estar aqui” ele dizia mais para si mesmo que para os outros.

A garota sentou-se numa pedra e voltou-se para o borrão vermelho no horizonte.

“Qual o seu nome?”, perguntou o rapaz.

” Dionísio”, o menino respondeu numa voz fraca.

“Você não gostaria de descer e se juntar a nós?”

O menino permaneceu calado por alguns instantes.

“Vamos, você agora não vai querer tomar conta de um pirralho, vai?” disse a garota.

“Eu sei o caminho”, respondeu o menino. Desceu calmamente da árvore e se aproximou dos dois.

“Mas… você não é um…”

“Eu sou Dionísio” o menino respondeu com seriedade.

“Ela quer ser chamada assim, cara. Deixa pra lá, deve ser só uma fase” a garota limpava as botas na pouca grama que havia pelo chão.

“E… como você veio parar aqui?” o rapaz tentava manter uma conversa.

“Não me lembro muito bem” respondeu o menino com uma voz ainda mais fina e fraca. “Lembro-me de fazer meus deveres de casa e descer para o jantar. Depois da sobremesa, papai tomou a lição de piano do dia.”

Seu rosto, agora eles viam, era cheio de sardas, e seus olhos eram muito negros.

“Eu errei uma nota.”

O rapaz e a garota se entreolharam.

“E daí?”, perguntou a garota.

“Eu errei.” respondeu Dionísio. “Eu errei!”

“Calma, todo mundo erra”, disse o rapaz.

“Eu nunca erro.”

Últimos momentos – parte 2

Durante o que parecia ser uma eternidade ele caminhou atrás dela. Podia ver apenas sua silhueta, e todo o resto era apenas nevoeiro. O cheiro do cigarro começou a incomodá-lo.

“É estranho”, ele disse.

“O que é estranho?”

“Eu sei que você está só fingindo, mas mesmo assim consigo sentir o cheiro do cigarro.”

“Eu já disse: é só você fingir que ainda não morreu. Eu estou me esforçando para fingir que este não é o meu último cigarro.”

Segundos intermináveis se passaram, até que ela se virou e perguntou:

“Por que você se jogou?”

A pergunta era oportuna, até mesmo esperada; ainda assim, ele não sabia muito bem como responder. Ela pareceu não se importar com a falta de resposta e continuou:

“Quer dizer, se a festa estava chata, você poderia ter saído pela porta.”

“Muito engraçado”, ele continuou caminhando.

“Eu sempre achei um pensamento muito estúpido querer tirar a própria vida. Você poderia ter aproveitado a festa; não só aquela, mas todas as outras. Você poderia ter morrido de várias outras formas: com uma picada de cobra durante uma viagem ao Amazonas; afogado num tsunami; com uma bala no meio das costas, fugindo de um assaltante; ou queimado durante um ritual satânico, sei lá…”

Ele parou por um instante e olhou para ela.

“Você tem uma imaginação bastante fértil, não?”

A garota sorriu. O cigarro havia se apagado de novo.

“O que eu quero dizer é que você poderia ter vivido. Só isso. Claro que teria sido muito mais fácil se ela não tivesse aparecido na festa.”

“Ela?”

A garota acendeu novamente o cigarro, já pela metade.

“A culpada por todos os seus sofrimentos. Aquela que nunca te olhou, mas que sempre se ofereceu para você. A maldita vagabunda que se esfregava em todos ali, como se não bastasse ser tão óbvia, tão fácil.”

“… De quem você está falando?”

“Da Morte. Ela estava lá, e ficou do seu lado durante toda a festa.”

A névoa parecia estar se dissipando aos poucos. A luz começou a diminuir, como se estivesse anoitecendo.

“Eu não entendo.”

“Não pensei que entenderia. Venha, nós temos que sair desse maldito nevoeiro.”

Últimos momentos

“Então, é isso que se ganha quando se perde a vida”, pensou.

Lembrou-se do último suspiro, do pulo antes do asfalto e, com os olhos cheios do que pareciam ser lágrimas, concluiu: pelo menos não dói mais.

“Não dói mais”, repetiu.

“Você quer dizer ‘não dói mais agora‘, não?”

Olhou para trás: havia uma garota ali. Como era possível? Aquele era o seu momento final, o seu último segundo de vida, e ao invés de refazer a viagem – nascimento, vida e morte – aparecia aquela garota estranha.

“Quem é você?”

“E isso importa? Você morreu: quem você vai encontrar aqui é irrelevante.”

Ela acendeu um cigarro. Mas não estamos do outro lado? Como ela pode fumar aqui?

“Você pode fingir que ainda está vivo: este é o segredo”, respondeu, sem nem ao menos ter sido perguntada.

“E quando é que eu encontro com os meus antepassados?”

A garota riu um pouco, fumou um pouco e, limpando o batom do canto da boca, disse:

“Eles podem não querer te encontrar; já pensou nisso?”

Aquilo não fazia nenhum sentido. Ela não deveria estar ali, não agora. Aquele era o seu momento, só seu: nenhum desconhecido deveria aparecer ali.

“Não foi assim que eu imaginei.”

“Nunca é.”

“E agora, o que eu devo fazer?”

“E como eu deveria saber?”

“Não sei… Você parece saber de alguma coisa.”

O cigarro estava quase se apagando. A garota parecia nervosa com isso.

“Eu sei que você foi o idiota que se jogou do quinto andar; e eu sei que eu estava no banheiro, passando mal por causa de uma maldita dose de rum, quando um outro idiota resolveu abrir a porta e bater na minha cabeça. Agora você tire as suas próprias conclusões; eu vou procurar um jeito de sair daqui.”

Ela acendeu novamente o cigarro e caminhou por entre a névoa.

Ele resolveu ir atrás dela.

– – – – –

Comentários da dona dessa porcaria: Saiu sem querer. Não sei se vai sair mais, então, stay tuned.

Comentários da dona dessa porcaria 2: Eu moro no quinto andar. he he he.